Um dos autores do projeto de lei que equipara aborto em gestação acima de 22 semanas a homicídio, mesmo em caso de estupro, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) disse que o texto poderá ser alterado durante as discussões na Câmara ( PL 1904/24 ). Entre as mudanças cogitadas, está o aumento de pena para estupradores e o acompanhamento psicológico como única medida socioeducativa para as adolescentes estupradas que abortarem nessas condições. Segundo ele, a intenção é punir médicos e outros agentes de saúde, e não as meninas.
Mas, para a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, Ana Pimentel (PT-MG), o projeto não contribui em nada para melhorar a vida das meninas e mulheres. O Parlamento, segundo ela, devia estar discutindo como diminuir os casos de estupro, e não o aumento de pena para o aborto nesses casos. Ela lembra que a maior parte dos estupros no País acontece com meninas de até 13 anos, geralmente vítimas de familiares e conhecidos. Essas meninas têm dificuldade até de identificar a gravidez.
Os dois parlamentares foram ouvidos pela Rádio Câmara nesta quarta-feira (19).
Adiamento da discussão
Na terça-feira (18), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), informou que o projeto sobre o aborto será debatido no segundo semestre, após o recesso parlamentar, por uma comissão com representantes de todos os partidos.
Sóstenes Cavalcante e Ana Pimentel elogiaram a decisão de Lira. A presidente da Comissão da Mulher destacou, porém, que o adiamento foi fruto da mobilização da sociedade brasileira, especialmente das mulheres. Para ela, é importante debater a legislação sobre o tema, já que o Código Penal é de 1940, mas no sentido de proteger a vida das mulheres e crianças.
Local de discussão
“Uma mulher que sofre estupro ser criminalizada mais do que aquele que comete o estupro, isso ser colocado em regime de urgência na Câmara? Os deputados precisam ser cobrados por essa perversidade, nós não podemos naturalizar esse tipo de debate público na nossa sociedade”, avaliou a deputada.
Já o autor do projeto ressaltou que a Câmara dos Deputados, com representantes eleitos pelo povo, é o espaço certo para o debate e critica "partidos de esquerda", por levarem a discussão para o Supremo Tribunal Federal (STF).
“Aqui é o lugar deste debate", defendeu Sóstenes. "Havia um entendimento no Colégio de Líderes que a matéria seria um pouco mais pacífica, mas as feministas fizeram muito barulho, querem debater o assunto e nós não fugimos do debate hora nenhuma”, disse.
Decisão do STF
Sóstenes Cavalcante afirmou que a apresentação do projeto de lei foi motivada pela decisão do STF que suspendeu resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) proibindo médicos de realizarem a chamada assistolia fetal para interromper gravidez resultante de estupro após 22 semanas de gestação.
A técnica de assistolia fetal utiliza medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto antes de sua retirada do útero e é recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas de gestação. A interrupção da gravidez não é crime no País em casos de estupro, risco de vida da mãe ou anencefalia fetal, ou seja, má formação do cérebro do feto.
Controvérsia
“A OMS diz uma coisa, o CFM do Brasil diz outra. Sou brasileiro, fico com o Conselho Federal de Medicina”, disse Sóstenes Cavalcante, que considera o procedimento cruel. O deputado acredita que a questão principal a ser debatida é se o feto de 22 semanas, ou cinco meses e meio, é um ser humano.
“Na minha avaliação, é um ser humano, porque a OMS diz que extra útero materno ele poderá sobreviver, lógico que com equipamento neonatal até chegar à idade madura do pulmão", afirmou. "Se isso é um ser humano, se alguém mata esse ser humano, quem diz que isso é homicídio não sou, é o Código Penal brasileiro”, complementou.
No entanto, a deputada Ana Pimentel, que é médica, disse que a viabilidade de fetos de 22 semanas viverem fora do útero é rara. "Se fosse assim, a gestação duraria 22 semanas, e não de 38 a 40 semanas."
Sóstenes disse ainda que “quiseram vitimizar a mulher no debate”, mas a proposta prevê que o juiz pode mitigar a pena da mulher. Ele acredita, por outro lado, que o médico ou agente de saúde que pratica a interrupção da gravidez deve ser “punido exemplarmente”. “Meu olhar está na defesa do bebê em primeiro lugar e na punição de quem pratica esse aborto”, salientou.
Decisão técnica
Ana Pimentel ressaltou que, em nota publicada ontem, a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo) disse que a resolução do CFM proibindo a assistolia fetal é antiética e se desvia das recomendações da OMS, que é contra a imposição de limites de tempo ao aborto legal.
A deputada afirmou que está havendo ideologização e politização de um procedimento técnico, que é o melhor para esses casos. “Se a assistolia fetal for impedida no Brasil, na prática se está inviabilizando o procedimento de interrupção da gravidez acima de 22 semanas”, argumentou. “Não acho que seja objeto de nossa atuação parlamentar legislar sobre tipos de procedimentos técnicos, isso é a ciência que precisa fazer”, completou.
“A ciência já tem estabelecido isto: que antes da 29ª semana [de gravidez] não se pode falar em sofrimento fetal”, acrescentou.
Arquivamento do projeto
Manifestantes, em sua maioria mulheres, se reuniram em frente a uma das entradas da Câmara dos Deputados para protestar contra o projeto.
O protesto foi organizado pelo movimento da sociedade civil Criança Não é Mãe, composto sobretudo por entidades feministas, e pede o arquivamento do projeto.
A deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP) participou do protesto e endossa o pedido. Ela apresentou, juntamente com a deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS), requerimento nesse sentido à Mesa Diretora da Câmara. Para as deputadas, o PL 1904/24 viola os direitos constitucionais à vida, a igualdade e a não discriminação. O argumento é de que o projeto “impõe distinções entre pessoas que têm igual direito ao aborto legal e devem dispor da mesma atenção para a concretização desse direito, conforme as particularidades de seus casos”.
Elas argumenta ainda que a proposta viola a proibição constitucional à tortura, tratamento desumano e degradante. "O projeto conduz as vítimas de estupro a um cenário de manutenção compulsória dessas gestações, violando frontalmente o direito constitucional dessas vítimas de não serem submetidas à
tortura ou a tratamento cruéis e desumanos", afirmam.
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