Durante audiência pública promovida pela Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) na quarta-feira (22), especialistas divergiram sobre a proteção regulatória do dossiê de testes (PRDT) para medicamentos humanos. Enquanto alguns debatedores defenderam a justiça da medida, outros apontaram que a PRDT pode dificultar o acesso da população a remédios mais baratos e aumentar o gasto do governo com a saúde pública.
O requerimento para a audiência ( REQ 27/2023 ) é de autoria do senador Izalci Lucas (PL-DF), que coordenou o debate. Segundo Izalci, a PRDT é um tema muito complexo, que exige um debate profundo no Parlamento. Daí a importância das audiências públicas sobre o assunto. Ele disse reconhecer a importância da quebra das patentes, mas disse que essa quebra pode inibir outras empresas a investirem em pesquisa e desenvolvimento.
Para o senador Dr. Hiran (PP-RR), a PRDT é um tema muito importante para o país, pois pode impactar a produção dos genéricos, que são "uma conquista do povo brasileiro". Ele afirmou que ainda não existe no Senado um projeto que trate do assunto. Dr. Hiran disse ter a impressão de que a adoção dessa medida poderia atrasar a produção de remédios genéricos, mas apontou que é preciso proteger as indústrias que investem em pesquisa.
— Se a gente estabelecer a disponibilidade disso depois dos 20 anos previstos na lei das patentes, isso também pode gerar desequilíbrio de preços — registrou o senador, que é médico.
O presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Renato Porto, defendeu a PRDT. Ele explicou que o processo de pesquisa de um medicamento costuma levar cerca de 12 anos até o pedido de registro nos órgãos competentes. O custo de uma pesquisa para um remédio pode custar até R$ 1,3 bilhão. Na visão de Porto, a patente é uma troca justa entre o inventor, que no caso são grandes empresas farmacêuticas, e a sociedade. Ele disse que a patente tem um tempo de 20 anos e não é para todos os produtos.
De acordo com Porto, a PRDT não aumenta o tempo das patentes e nem bloqueia o mercado por mais tempo. Ele destacou que na maioria dos países o prazo da PRDT é de cinco anos, contados logo a partir de quando o pedido de registro (o dossiê) chega ao órgão regulador. Segundo o representante da Interfarma, essa proteção não dificulta a produção de genéricos. Ele citou como exemplo a PRDT para produtos veterinários e agrícolas ( Lei 10.603, de 2002 ). Na opinião de Porto, essa proteção legal nunca prejudicou a entrada de produtos genéricos voltados para os animais ou para o setor agrícola.
— É importante que a gente não demonize a patente, um instrumento usado no mundo todo para recompensar o inventor, que colocou sua cabeça e seu tempo para desenvolver algo para a sociedade — argumentou Porto.
O coordenador-geral de Propriedade Intelectual do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Miguel Campo Dall Orto Emery de Carvalho, afirmou que é importante diferenciar os propósitos das patentes e da PRDT. Ele explicou que a patente protege a invenção, enquanto a PRDT protege os dados do dossiê de testes clínicos apresentados à Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a comercialização de medicamentos. Carvalho admitiu, no entanto, que pode haver sobreposição desses tempos e que, em alguns casos, a proteção efetiva pode ir além dos 20 anos. Segundo ele, é um desafio conciliar esses dois períodos.
A chefe de Gestão da Qualidade e Propriedade Intelectual da Anvisa, Jussanã Cristina de Abreu, explicou o processo de registro de medicamentos na agência. Para registro de medicamentos genéricos e similares, o medicamento referência em si é utilizado como comparativo nos estudos. Por definição legal, os medicamentos genérico e similar são "cópias" dos medicamentos referência – por isso há necessidade de se utilizar o medicamento referência, adquirido no varejo ou conforme especificado em norma, nos estudos comparativos.
Segundo Jussanã, na hipótese de alteração do atual sistema para a PDRT para medicamentos de uso humano, os seus potenciais efeitos na regulação sanitária devem ser considerados. Ela alertou que alguns dos possíveis efeitos são o aumento da carga regulatória, o potencial de litígios e um maior tempo de avaliação dos dossiês de registro.
— Nessa hipótese [de adoção da PRDT], é preciso ponderar o impacto no âmbito regulatório, que pode gerar uma evidência concreta de interferência no acesso da população a medicamentos — alertou a diretora da Anvisa.
De acordo com a assessora regional de Advocacy para América Latina da Organização Médicos Sem Fronteiras, Marcela Vieira, a adoção da PRDT poderia levar produtores de genéricos a duplicar testes com resultados já conhecidos – o que seria uma violação a princípios de ética em pesquisa com seres humanos, pois submeteria mais pessoas a testes cujos resultados já são conhecidos. Ela disse que já existem leis que protegem os dados de pesquisa no Brasil. Segundo Marcela, a medida pode dificultar o acesso da população a medicamentos, aumentar o preço dos remédios e expandir o gasto público com saúde.
— A exclusividade de dados atrasa a entrada de medicamentos genéricos, aumentando os custos para o SUS e para os consumidores — alertou Marcela.
Na mesma linha, o presidente-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos e Biossimilares (PróGenéricos), Tiago de Moraes Vicente, afirmou que a PRDT traria impactos negativos para a indústria de medicamentos genéricos no Brasil. Ele disse que 90% das doenças conhecidas já contam com remédios genéricos. Segundo Vicente, em 25 anos, desde que foi lançado, o genérico representa uma economia de R$ 300 bilhões para o país.
— No final, o que estamos tratando aqui são vidas. É a melhora na saúde, é a inclusão daqueles que têm menos condições, é pensar no SUS — ponderou Vicente.
Para o pesquisador Ricardo Lobato Torres, representante da Associação Brasileira de Economia Industrial e Inovação (Abein) e professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), os benefícios de interesse social com uma possível adoção da PRDT são incertos. Ele apontou, porém, que é certo que haverá custos e que estes serão socializados. Assim, ele não recomendaria a adoção da PRDT no Brasil.
Na primeira vez que um fabricante solicita o registro de um novo medicamento, deverão ser apresentados os dados dos estudos pré-clínicos e clínicos. Assim, é elaborado um documento chamado de dossiê. Com a PRDT, as autoridades reguladoras não poderão aceitar pedidos de registro de medicamentos genéricos que utilizem como base os dados fornecidos pelo solicitante do registro do medicamento inovador. O período desse impedimento, na maioria dos países que adotam essa medida, é de cerca de cinco anos.
Na semana passada, a CCT também promoveu um debate sobre o assunto . Na ocasião, os especialistas apontaram os riscos para o país com a eventual PRDT para medicamentos humanos. Os debatedores manifestaram preocupação com o acesso da população aos remédios genéricos, com a diminuição da participação das farmacêuticas nacionais no mercado e com o aumento do preço dos medicamentos.
A audiência ocorreu de forma interativa, com a possibilidade de participação dos cidadãos. Vários internautas entraram em contato com a comissão por meio do portal e-Cidadania . O senador Izalci leu algumas dessas mensagens. A internauta identificada como Carolina, de Pernambuco, lamentou o número de informações falsas acerca do tema e pediu transparência. Já Ana, do Distrito Federal, manifestou preocupação com os impactos que a burocracia da PRDT poderia causar na saúde pública.
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