A população negra é maioria nos presídios brasileiros. Isso a sociedade e os Poderes Públicos já sabem. O que falta trazer à luz é como essa realidade foi produzida e persiste. Uma das principais referências nesse tema na atualidade, a professora e doutora em estudos de gênero, mulheres e feminismos, Carla Akotirene, aponta o caminho para algumas respostas a partir de estudos inovadores, filosofia africana e reverência aos Orixás.
Assistente social de formação e prática profissional, ela é autora dos livros “O que é Interseccionalidade”, da coleção “Feminismos Plurais” e “Ó pa í, prezada: racismo e sexismo institucionais tomando bonde nas penitenciárias femininas”. Em 2016, criou o programa Opará Saberes para estimular e apoiar o ingresso e permanência de pessoas negras na universidade.
A obra mais recente de Akotirene será lançada em janeiro de 2024, com o título “É fragrante fojado dôtor vossa excelência". Na publicação, ela denuncia a prática criminosa de alguns agentes de segurança pública que forjam o flagrante de tráfico de drogas, imputado a pessoas negras.
“Os promotores acreditam sempre na versão do policial, nunca na legalidade que está sendo trazida do ponto de vista do ‘flagranteado’. Aí, fica um embate entre escrita e oralidade. A escrita acaba prevalecendo, porque ambos são servidores públicos, promotor e policiais”, ressalta Akotirene.
A intelectual negra esteve em Brasília na última semana para uma palestra no Ministério Público do DF (MPDFT) e da capital seguiu direto para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde também era ansiosamente aguardada pelo público.
“O racismo participa das sentenças e dos flagrantes. Sobre os flagrantes forjados, os policiais também são trabalhadores, eles também ganham com a balança de precisão registrada como verdadeira, ainda que seja em uma fé pública fraudada, na sua atuação profissional para o Estado, o que favorece a promoção de carreira.”
Carla Akotirene acusa a “mídia sensacionalista” de incentivar os flagrantes forjados que causam danos irreparáveis às vítimas. Haveria, na opinião dela, um acordo tácito entre essas mídias e a polícia para gerar flagrantes e aumentar a audiência das emissoras. Mesmo quando o flagrante é considerado ilegal e a prisão preventiva, convertida, homens e mulheres negras já tiveram suas vidas devastadas.
O 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou o perfil da população encarcerada: negros e jovens. Em 2022, mais de dois terços (68,2%) do total da população prisional é negra. E no que diz respeito à faixa etária, a maior parte da população encarcerada (43% do total) continua sendo de jovens entre 18 e 29 anos.
À reportagem da Agência Brasil, Carla Akotirene também apontou como parte do problema a condução das audiências de custódia, realizadas após as prisões.
“A colonialidade do saber hierarquizou a nossa palavra, que é um fundamento Ubantu. O que adianta você passar por uma audiência de custódia, ser entrevistada, na presença de um defensor público constituído ou o advogado se, naquela cena colonial, a branquitude vai incorporar valores de incerteza e permanência hierarquizada?”, indaga a pesquisadora.
Akotirene tem como foco central de seus estudos as mulheres negras. Assim sendo, ela vai além em suas análises e afirma que o racismo tem relação com o poder de homens sobre mulheres, quando a figura masculina predomina em funções de liderança, autoridade moral e privilégio social.
“Olho para a matriz colonial e concordo com [a ativista] Sueli Carneiro, quando diz que as mulheres [brancas] são tão déspotas quanto seus companheiros. É por isso que nós, feministas negras, estamos perto da luta antirracista, mas também contribuindo para a luta antipatriarcal.”
A partir das experiências vividas dentro de presídios de Salvador (BA) para elaborar a tese de seu mestrado, Carla Akotirene compreende que o racismo sempre teve relação com o capitalismo, desde os tempos da escravidão. É dessa forma que ela problematiza a relação entre dias trabalhados e redução de pena.
“O homem branco, como é fruto de uma experiência burguesa hegemônica, ele na condição de criminoso, consegue facilmente um laudo médico que afirma que tem um problema de saúde, problema psiquiátrico. Mas, o menino da comunidade, que abusa de substância [tóxica] e rouba um celular para comprar drogas, ele não vai ser tratado como alguém que tem problemas com substâncias e sim como um criminoso”.
Carla Akotirene cita como fonte de inspiração o pensamento de feministas dos Estados Unidos, como a abolicionista negra Sojourner Truth (1797-1883), que viu a maioria dos filhos ser vendida para a escravidão naquele país. Além das contemporâneas Bell Hooks, pseudônimo da escritora Gloria Jean Watkins (1952-2021) e a filósofa Angela Davis.
Akotirene exalta, no entanto, a intelectualidade nacional neste campo. “Lélia Gonzalez antecipou o movimento. Mas, a gente fala muito mais de Angela Davis como influente do que Lélia. E há outras entre nós, como Luiza Bairros [1953-2016], que foi ministra de Igualdade Racial e montou o plano Juventude Viva que, agora, é Juventude Negra Viva. Assim como Matilde Ribeiro, a primeira ministra de Igualdade Racial do Brasil.“
A estudiosa observou em sua trajetória acadêmica que a Lei de Cotas nas universidades públicas mudou a realidade de cotistas que disputaram vagas no ensino superior.
“A partir dessa reconfiguração demográfica nas universidades, de 2004 para cá, com as cotas raciais, com os governos mais democráticos, muitas mães de família foram fazer um curso de Direito. Eu assisti em várias audiências de custódia, que elas faziam cursos de Direito, exatamente, para defender seus filhos que não saíram do mundo do crime.”
Como alternativa à prisão em massa, Akotirene menciona a mediação de conflitos. A partir do ponto de vista de uma tecnologia jurídica afrocentrada, ela acredita em um cenário onde, no futuro, “não precise existir nenhum tipo de punição, onde a gente possa abolir o cárcere”.
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