Nesse Dia das Mães, aAgência Brasilouviu histórias de mães que lutam pela verdade e pela memória de seus filhos, perdidos na guerra velada que ocorre todos os dias nas periferias das grandes cidades brasileiras. São casos emblemáticos que representam um desafio a ser enfrentado e superado, segundo especialistas ouvidos pela nossa reportagem.
O Dia das Mães deste ano não vai ser comemorado pela pedagoga Ana Paula de Oliveira, de 46 anos, moradora da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Ela é mãe de Johnatha de Oliveira Lima, assassinado com um tiro nas costas aos 19 anos de idade. Em 14 de maio, há 9 anos, o jovem não voltou mais para casa.
“Meu filho não estava no lugar errado, não estava na hora errada, não tinha feito nada de errado, simplesmente era mais um jovem preto dentro de uma favela.”
E, para ela, foi morto pela polícia por ser negro, pobre e morador da periferia. Essa é a maior ferida de Ana Paula Oliveira. Ela conta que no dia do crime o jovem voltava para casa de sua família, após deixar um pavê na casa de sua avó e levar a namorada em casa. O trajeto era curto, pois todos moravam na mesma comunidade, mas o que aconteceu no caminho mudou a vida deles para sempre.
Uma discussão entre policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e moradores da comunidade, indignados com a truculência policial, terminou com tiros sendo disparados para o alto e na direção das pessoas que protestavam. O jovem, que apenas passava pelo local, sem sequer estar envolvido no conflito, foi atingido e morreu.
“E aí quando eu recebo essa notícia eu fico perguntando por quê? Por que que a polícia matou meu filho?”, conta a mãe Ana Paula Oliveira. Aparentemente, não havia uma explicação razoável para uma morte tão banal. Demorou um tempo até que ela conseguisse se reerguer para lutar por justiça pelo seu filho.
Ao participar dos primeiros atos contra a letalidade policial no estado do Rio de Janeiro, a pedagoga se deu conta de que havia algo em comum entre tantas mães, de tantas comunidades diferentes, não só do Rio, mas de todo o Brasil: mães negras vestindo camisetas com fotos dos filhos negros mortos pela polícia. Não era uma mera coincidência.
Passados 9 anos do crime, Ana Paula continua aguardando uma resposta da Justiça para o crime. “Desde o assassinato eu encontrei outras mães e impulsionadas por uma mesma luta, que é a busca pela verdade e por justiça, por nossos filhos, a gente acabou formando o movimento das Mães de Manguinhos”, explica a pedagoga.
A quantidade de coletivos de mães que tiveram os filhos assassinados pelo Estado é um indicador de que existe um preconceito estrutural na sociedade, seja pela truculência policial ou pela conivência do Poder Judiciário com tantas mortes sem punição. É o que afirma a jornalista e doutoranda em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB), Maíra de Deus Brito.
“Existe um racismo estrutural e uma truculência policial que o Estado permite que aconteça. A partir do momento que a gente não vê investigações sérias, a gente não vê punição. Enquanto sociedade, estamos deixando isso acontecer. Estamos, literalmente, perdendo nosso futuro quando a gente permite que esses jovens partam tão cedo, de maneira tão violenta e abrupta”, conclui Maíra Brito.
Na Bahia, essa rede de apoio às mães que perderam seus filhos para a letalidade policial também está muito presente. O projeto Minha Mãe Não Dorme, do grupo Odara – Instituto da Mulher Negra, com sede em Salvador, busca sensibilizar a sociedade brasileira e baiana para os danos e impactos causados tanto pela violência policial quanto pelo tráfico de drogas na vida de adolescentes, jovens negros, suas mães e familiares. A ação tem como foco o apoio, articulação, fortalecimento e diálogo com as mães de jovens assassinados em decorrência da violência urbana.
“É importante que jovens e mães tenham noção da sua realidade porque nós não podemos naturalizar esses níveis e esses tipos de violência que têm sido perpetrados contra a comunidade negra historicamente. Então, não é porque são violências que ocorrem há muito tempo, eu diria até que são violências seculares, que elas devem ser normalizadas, naturalizadas”, afirma Gabriela Ashanti coordenadora do projeto Minha Mãe Não Dorme.
Quando essas mães encontram outras que perderam filhos em circunstâncias muito parecidas, explica Gabriela Ashanti, elas se dão conta de que não foi um caso isolado, não foi um acidente ou algo aleatório. “Elas começam a se dar conta ou ficar mais atentas a essa violência policial e a essa letalidade como um fenômeno social que precisa de estratégias pra ser combatido”.
Outro objetivo, segundo a coordenadora do projeto, é de dimensão subjetiva e psicossocial, ao buscarem estratégias para se fortalecerem emocionalmente justamente em um momento em que estão fragilizadas pela perda e, sobretudo, pela forma como elas sofreram essa perda.
“A forma como esses filhos são tirados delas faz com que emocionalmente fiquem mais fragilizadas, fiquem com um luto que vai sendo acrescido de indignação, de revolta, de uma série de outros sentimentos e sensações e emoções, que faz com que esse luto se agrave, se intensifique, se estenda inclusive. Então, quando elas se encontram vão buscando as estratégias de se fortalecerem e se sustentarem, inclusive emocionalmente, uma vai apoiando a outra e uma vai se espelhando na outra também nas formas de resistir emocionalmente”, detalha Gabriela Ashanti.
Uma das mães atendidas pelo Instituto da Mulher Negra é Edineide Barbosa do Carmo. Em 2017, ela e a filha, Mirella do Carmo Barreto, de apenas 6 anos, estavam estendendo roupas em casa, no bairro São Caetano, em Salvador, quando policiais militares supostamente entraram no bairro em busca de criminosos que teriam roubado um celular. Testemunhas, no entanto, alegam que os policiais chegaram atirando, sem nenhum motivo aparente, e que um dos disparos atingiu a pequena Mirella, que morreu horas depois na UPA de San Martin.
Após 6 anos, o crime permanece sem solução e a Justiça realizou apenas uma audiência de instrução. “O sentimento de passar o Dia das Mães sem a minha filha, nesse ano de 2023, é algo muito doloroso. Ao lembrar do aniversário de 13 anos dela, que estaríamos juntas comemorando o Dia das Mães, igual a todas as mães. E de mim foi tirado esse direito”, afirma Edineide. A primeira audiência de instrução aconteceu em 2018, e, após longos 5 anos, a segunda audiência deve ocorrer no próximo dia 30 de maio.
A vendedora ambulante Bruna Mozer teve seu filho de 18 anos executado, em 2018, na comunidade do Miquiço, no Rio de Janeiro. Ela conta que o filho tomou um tiro no ombro, mas se entregou para a polícia militar (PM), mas mesmo assim deram outro tiro fatal. No inquérito policial, os PMs alegaram auto de resistência seguido de morte. “Meu filho Marcos Luciano Mozer foi assassinado pelo Estado do Rio de Janeiro. Eles poderiam ter levado meu filho preso. Que auto de resistência é esse que a pessoa leva um tiro nas costas e um na cabeça? Ele não morreu em troca de tiros, morreu deitado no chão, já rendido”, questiona.
Para piorar, explica Bruna Mozer, o Estado enterrou o filho dela como indigente. Mesmo se apresentando ao Instituto de Medicina Legal (IML) com a certidão de nascimento e CPF, ela não conseguiu a liberação do corpo e nem o atestado de óbito do filho. Por isso, teve que entrar com pedido de retificação com apoio da Defensoria Pública do Rio. “Até hoje, 5 anos e 5 meses depois, ainda não me deram essa retificação e continuo lutando e aguardando”, lamenta Bruna Mozer.
O ponto comum entre tantas histórias de violência policial contra jovens negros é a tentativa de desumanizar e criminalizar as vítimas, retirando direitos básicos fundamentais, na tentativa de justificar essas práticas violentas do braço armado do estado, afirma Ana Paula Oliveira.
Ela lembra que o filho dela tem nome e tem sobrenome. “Ele tem uma mãe, ele continua sendo meu filho, e vou lutar por ele até o fim. Nós, mães pretas, já educamos nossos filhos a ter que sair com a identidade, a ter que o tempo todo que se identificar, e ter que comprovar que são produtivos, que estudam, que trabalham. Olha meu filho, olha, mostra a carteirinha da escola, mostra que é você, né? E mesmo assim eles não têm a vida garantida”.
Dados da 16ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em 2022, mostram que ao menos 43.171 pessoas foram vítimas de ações de policiais civis ou militares de todo o país, desde 2013, ano em que esse monitoramento começou a ser feito. Os números não incluem as mortes por intervenções de policiais Federais e Rodoviários Federais.
O relatório aponta que a letalidade policial diminuiu 6,5%, em 2021, mas a mortalidade de negros se acentuou. Enquanto a taxa de mortalidade entre vítimas brancas retraiu 30,9%, a taxa de vítimas negras cresceu em 5,8%. Segundo o documento, oito em cada 10 vítimas são pessoas negras e a metade delas, jovens entre 12 e 29 anos - mais de 90% são homens. “O percentual de pretos e pardos vítimas de intervenções policiais é ainda mais elevado do que supúnhamos, chegando a 84,1% de todas as vítimas com raça/cor identificados”, aponta a 16ª edição do Anuário.
“Essa política de segurança pública é genocida e tem um alvo. Então, comecei a ter esse entendimento, e isso vai causando uma revolta ainda maior, uma vontade de seguir na luta, de continuar denunciando toda essa violência do estado”, afirma Ana Paula Oliveira, ao relembrar que o policial que matou seu filho já respondia por triplo homicídio e duas tentativas de homicídio na Baixada Fluminense. A vítima não tinha antecedentes criminais e estava apenas caminhando pela rua.
Com a finalidade de reduzir mortes e a violência contra a juventude negra, além de enfrentar o racismo estrutural, o Governo Federal, por meio do Decreto Presidencial nº 11.444/2023, publicado em 21 de março, instituiu um grupo de trabalho para a elaboração do Plano Juventude Negra Viva. O prazo para conclusão dos trabalhos é de 7 meses.
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