Reduzir quatro dias de pena para cada livro lido na prisão já é possível desde 2013, por recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Uma pesquisa divulgada esta semana, mostra, no entanto, que pouca gente consegue ter acesso a esse direito. O estudo mostra que as atividades de leitura nos presídios enfrentam uma série de dificuldades, como a proibição de títulos, exclusão de pessoas presas com baixa escolaridade e migrantes e falta transparência em relação à remição da pena.
O que era apenas uma recomendação do CNJ, tornou-se uma resolução, o que de forma simplificada, significa que tem maior peso jurídico. Publicada no mês passado, a resolução estabelece procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liberdade. Essa medida entrou em vigor este mês.
O estudo, inédito, foi realizado pelo Grupo Educação nas Prisões, que reúne diversas organizações ligadas ao tema. A pesquisa, realizada entre dezembro de 2020 e março de 2021, identificou o perfil dos projetos que atuam no sistema prisional com o objetivo de promover a leitura e com outras atividades de educação não formal e elaborou um diagnóstico de suas práticas.
Os dados mostram que em relação aos últimos seis meses, a grande maioria, 53,8%, dos projetos não tinha informações sobre o total de dias reduzidos na penas dos detentos decorrente de suas ações. A mesma proporção, 53,8%, não sabia do tempo para o Poder Judiciário avaliar cada caso de remição e 61,5% não tinham informações sobre se os pedidos de remição foram ou não negados.
Segundo a assessora da Ação Educativa, uma das organizações que integram o Grupo Educação nas Prisões, Claudia Bandeira, não há transparência quanto a essas informações. “As pessoas que realizam os projetos não sabem se de fato a situação está tendo impacto na remição da pena. Nem as pessoas que coordenam os projetos, na ponta, nem as próprias pessoas presas, que participam, têm informação se a participação está remindo ou não, nem seus familiares”, diz.
Outro desafio encontrado foi a exclusão de pessoas que poderiam se beneficiar com as atividades. A maioria das respostas, 28,6%, indicou que não havia participação de pessoas não alfabetizadas ou com dificuldades de leitura. O problema disso, segundo Bandeira, é que a maior parte da população carcerária tem baixa escolaridade.
De acordo com dados de 2020 do Departamento Penitenciário Nacional, o Brasil tem hoje uma população privada de liberdade de mais de 670 mil pessoas, o que extrapola as quase 450 mil vagas em presídios, o que indica uma superlotação. Dados de 2017 mostram que 75% da população prisional brasileira não chegou sequer ao ensino médio e que menos de 1% dos presos possui graduação.
Apesar disso, apenas cerca de 92 mil presos têm acesso a estudos nas prisões, o que equivale a aproximadamente 12% do total. Desses, 23 mil têm acesso a remição da pena por estudo ou esporte. Apenas 9 mil, cerca de 1% do total, têm acesso a atividades complementares, como a leitura.
Muitos dos desafios apontados no estudo, de acordo com Claudia, estão contemplados na recente resolução do CNJ, que entre outras coisas, permite a adoção de estratégias específicas de leitura entre pares, leitura de audiobooks, relatório de leitura oral de pessoas não-alfabetizadas ou, ainda, registro do conteúdo lido por meio de outras formas de expressão, como o desenho.
Os presos precisam comprovar que leram os livros. Antes da resolução isso era feito por meio de uma resenha. Agora, a resolução permite que isso seja feito por meio de desenhos, por exemplo. “A gente sabe que existem esses desafios para garantir o direito à remição pela educação não formal, pela leitura. Agora, a gente, enquanto grupo, vai monitorar os estados para que se adequem à resolução”, diz.
Em nota, o CNJ diz que embora o estudo mostre questões que vêm sendo objeto de atenção do conselho, a resolução publicada recentemente não se baseou nesse diagnóstico. As discussões que resultaram na normativa começaram em 2019 e envolveram diversas instituições e organizações ligadas ao tema.
“A resolução muda totalmente a forma de organizar o acesso ao livro e à leitura nas unidades prisionais”, diz o conselho. “O primeiro impacto será que as unidades prisionais terão que implantar estratégias para acesso universal, para que todas as pessoas tenham direito ao livro e, ao lerem o livro, apresentarem um relatório de leitura para solicitar a remição de pena. A redução de pena deixa de ser um privilégio e passa a ser um direito de todas essas pessoas que são privadas de liberdade”, acrescenta.
O CNJ informa também que atua para garantir formação de magistrados, gestores e dos demais envolvidos para garantir o controle e fiscalização para que de fato a norma seja implementada. O Conselho está iniciando a contratação de organizações que irão realizar duas grandes pesquisas de abrangência nacional: um Censo Nacional de Esportes nas Prisões e um Censo Nacional de Leitura em espaços de privação de liberdade, esse abrangendo, também, o sistema socioeducativo. Essas ações devem resultar na apresentação, em cooperação com o Departamento Penitenciário Nacional, de dois planos nacionais destinados ao fortalecimento das práticas sociais educativas nos espaços de privação e restrição de liberdade.
Segundo o coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o defensor público Mateus Oliveira Moro, para que a resolução seja de fato implementada é preciso que o poder executivo crie convênios com as Secretarias Estaduais de Educação e que haja um "investimento nos direitos de pessoas presas. O Judiciário precisa ser mais sensível em relação a essas questões. Muitas vezes, [juízes] pegavam muitas resenhas que comprovariam a remição e, por uma série de questões, não a concediam”, diz.
Moro integrou o grupo de trabalho que deu origem à resolução do CNJ. Pela resolução, os presos podem usar até 12 leituras por ano para solicitar a redução da pena em até 48 dias. Uma Comissão de Validação formada por voluntários ligados à educação pública, docentes, bibliotecários, membros de organizações da sociedade civil entre outros, deverá analisar os relatórios de leitura produzidos para cada obra. Eles terão 30 dias para verificar se a pessoa privada de liberdade leu ou não o livro. A comissão será estabelecida pelo Juízo competente, que ao final deliberará sobre a redução da pena.
“Para ler um livro tem que ser um herói e na pandemia, um herói ao quadrado, porque o acesso a esses livros é bem limitado, o acesso à educação é limitado”, diz Moro, ressaltando que os presídios estão superlotados e não oferecem qualidade de vida para os detentos. “Se está fechado em uma cela sem janela, sem iluminação artificial e com 40 pessoas em um espaço com 12 camas, como vai estudar e ler?”, questiona.
Mesmo com todas as dificuldades, foi a leitura que mudou a vida da farmacêutica Sirlene Domingues, 45 anos. Em 2011, quando estava presa, ela participou do programa Remição em Rede, um das organizações que também faz parte do Grupo Educação nas Prisões, e que promove grupos de leitura nas penitenciárias do estado de São Paulo.
“Era o acesso que tinha à educação, à literatura e ao mundo aqui fora. Querendo ou não, no bate papo acabavam falando coisas do mundo de fora, coisas que não tinham a ver com o lugar que estava”, diz e acrescenta que foi ali que começou a valorizar a educação. “Passei a ser mais atenta à educação. Eu tinha só a noção de que era algo que precisava para a formação, só para ter um diploma. No clube de leitura, eu tive acesso a esse conhecimento de que a educação é mais profunda. Foi o que me libertou”.
Por conta dos livros, ela tirou uma boa nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e obteve uma bolsa integral pelo Programa Universidade para Todos (ProUni). Formou-se em farmácia. Hoje, em liberdade, é pós-graduada e atua como voluntária no Remição em Rede. Na época, ela não pode usar os livros para reduzir a pena. “É preciso fazer algum tipo de trabalho com as pessoas que estão lá dentro para poder conscientizar sobre o poder da educação e sobre os caminhos que ela pode trazer. As pessoas não têm noção, acabam sendo mais inferiorizadas e marginalizadas”.
“A medida que [as pessoas privadas de liberdade] se aprofundam nas leituras, podem olhar para o mundo que as cerca e fazer uma leitura crítica desse mundo”, diz a educadora e idealizadora e articuladora do Remição em Rede, Janine Durand. Segundo ela, a organização prepara-se para retomar o programa de leitura, que foi suspenso por conta da pandemia. Mudaram a metodologia e pretendem usar vídeos para fazer as oficinas de leitura.
O Diagnóstico de práticas de educação não formal no sistema prisional do Brasil, está disponível na íntegra, na internet. Criado em 2006, o Grupo Educação nas Prisões reúne Ação Educativa, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Conectas Direitos Humanos, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Remição em Rede, Núcleo Especializado de Situação Carcerária, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Grupo de Atuação Especial de Educação, do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Em nota, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), ligado ao Ministério da Justiça, informa que doou 267.352 livros às administrações penitenciárias das Unidades Federativas e às penitenciárias federais, investindo mais de R$ 4,5 milhões. Segundo o Departamento, a ação tem como objetivo contemplar o Programa Nacional de Remição de Pena pela Leitura no Brasil. “A aquisição das obras servirá para o incremento do acervo de livros nas unidades prisionais, fomento aos clubes de leituras, ampliação das ações de remição de pena pela leitura, e atividades de leitura, em geral”, diz.
Em março de 2020, o Depen publicou a Nota Técnica Remição de Pena pela Leitura, com a finalidade de apresentar orientação nacional para fins da institucionalização e padronização das atividades de remição de pena pela leitura e resenhas de livros no sistema prisional brasileiro. O Depen acrescenta que no Sistema Penitenciário Federal, sob responsabilidade direta do Depen, a remição pela leitura foi instituída em 2009 na Penitenciária Federal em Catanduvas (PR). O projeto foi implementado pela equipe de Especialistas e Técnicos em execução penal, como uma das primeiras iniciativas que se tem registro no país.
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